Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela,
apesar de seu ímpeto de sangue.
Se eu a solto, ela queima o pasto vivo,
sangra o cordeiro, faz cair o pássaro.
De minha língua devo desprendê-la,
encontrar-lhe uma toca de castores,
ou sepultá-la com argamassa e cal,
para não alçar voos como a alma.
Eu não quero dar mostras de estar viva,
enquanto ela em meu sangue vai e vem
e sobe e desce por meu louco alento.
Embora Jó, fremente, a tenha dito,
não quer dizê-la minha pobre boca,
a fim de que não role e não se enrede
nas tranças das mulheres que a encontrem,
e a fim de que não torça ou queime o mato.
Quero lançar-lhe sólidas sementes
que, numa noite, vão cobri-la toda,
sem deixar dela o cisco de uma sílaba.
Ou então vou quebrá-la, como a víbora
que se parte em metades entre os dentes.
E voltar a meu lar, entrar, dormir,
já destacada e separada dela,
e despertar depois de dois mil dias,
renascida de sono e esquecimento.
Sem saber – ai! – que tive uma palavra
de iodo e pedra-ume entre meus lábios,
e sem poder lembrar-me de uma noite,
de um país estrangeiro e de uma casa,
e da cilada e do infortúnio à porta,
e de meu corpo a caminhar sem alma.
Gabriela Mistral
Tradução de Ruth Sylvia de Miranda Salles. In: MISTRAL, Gabriela; MEIRELES, Cecília. Poemas