O escritor Pedro Rodrigues Salgueiro me encaminhou trecho de uma carta de Rosa de Luxemburgo, escrita da prisão de Breslau, numa noite natalina de 1917. Ela diz: “No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida, sob os passos lentos e pesados da sentinela, canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir.” O texto me deixou inquieto porque veio sem qualquer apresentação ou justificativa, aparentemente por nenhum motivo, grifado com um pequeno título: noite.
É possível tatear no escuro à procura de uma saída, mesmo que as portas pareçam fechadas. Não é difícil reconhecer que o escuro existe, basta ligar a televisão ou o rádio, ler os jornais e ir ao cinema. Ou olhar pela janela do carro. Você nem precisa frequentar como paciente a emergência de um hospital público ou uma delegacia de polícia. Não vá tão longe.
As trevas sempre existiram e Plínio, O Velho, até escreveu que encarar a luz é para os mortais a coisa mais aprazível e o que está sob a terra é nada. O que jaz escondido pertence ao mundo da ignorância. Quando desejamos conhecer algo, trazemos para a luz. A luz da ciência, a luz do conhecimento, a luz da razão.
Mas, prefiro a luz do conhecimento, que não é necessariamente a luz da razão. O logos, este saber dos gregos que no ocidente chamou-se ciência, e que explica o que a mitologia deixou de explicar, não preenche todo o saber. Permanece o espaço da não razão, que não é necessariamente treva.
A ciência não nos colocou no lugar mais calmo e justo, isso já sabemos. O medo de que algo inevitável está para acontecer atormenta nosso sono. Do mesmo jeito que atormentava o dos povos antigos, ao pressentirem o exército inimigo sitiando suas muralhas. Qual a diferença entre as bolas de fogo arremessadas das máquinas de guerra medievais e o fogo de uma bomba atômica? A morte está no fim de tudo, não importa a intensidade da explosão.
No filme Sonhos, do japonês Akira Kurosawa, alguns soldados se perdem na tempestade de neve quando procuram um forte. Amarram-se uns aos outros para não se extraviarem. Cuidam em não dormir. Mas a fadiga e o sono são irresistíveis. O comandante deita e sonha com a morte. Ela vem buscá-lo, sedutora e bela. Ele acorda e grita por seus homens. Tateiam há dias, dão voltas sem nunca acharem o fortim que os acolherá e salvará suas vidas. Por fim, escutam um toque de corneta bem próximo. Sempre estiveram há alguns passos da salvação, mas, no escuro, não divisavam nada.
Nunca existirá uma porta, afirmou Jorge Luis Borges ao escrever sobre labirintos. Pior que afirmar não existirem portas é dizer que estamos sós, ligados numa rede de comunicação, que não nos coloca em contato verdadeiro com ninguém. Dura metáfora. Dura muralha de pedra.
Como responder à pergunta dos personagens de Tchekhov – o que fazer? – se a resposta é sempre: não sei. Ou que o mais importante é transformar a vida e que o resto é inútil. Transformar que vida?
Dos fios de uma Rosa de Luxemburgo prisioneira, me aparece a crença de que o segredo não é outro senão a própria vida; de que a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo. Basta saber olhar.
Ronaldo Correia de Brito