À Espera dos Bárbaros Konstantinos Kaváfis O que esperamos na ágora reunidos? É que os bárbaros chegam hoje. Por que tanta apatia no senado? Os senadores não legislam mais? É que os bárbaros chegam hoje. Que leis hão de fazer os senadores? Os bárbaros que chegam as farão. Por que o imperador se ergueu tão …

21 de março : Dia Mundial da Árvore e da Floresta e Dia Mundial da Poesia ” As árvores crescem sós. E a sós florescem. Começam por ser nada. Pouco a pouco se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo. Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos, e deles nascem folhas, e as …

FERNANDO PESSOA, in POESIAS INÉDITAS (1930-1935), [(Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990)] NÃO DIGAS NADA! Não digas nada! Não, nem a verdade! Há tanta suavidade Em nada se dizer E tudo se entender — Tudo metade De sentir e de ver… Não digas nada! Deixa esquecer. Talvez que amanhã Em outra …

ALICE VIEIRA, in OS ARMÁRIOS DA NOITE, capa de Heduardo Kiesse/ ParadoXos (Caminho, 2014) esperar que voltes é tão inútil como o sorriso escancarado dos mortos na necrologia dos jornais e no entanto de cada vez que a noite se rasga em barulhos no elevador e um telefone se debruça de um sexto andar sinto …

De amor nada mais resta que um Outubro e quanto mais amada mais desisto: quanto mais tu me despes mais me cubro e quanto mais me escondo mais me avisto. E sei que mais te enleio e te deslumbro porque se mais me ofusco mais existo. Por dentro me ilumino, sol oculto, por fora te …

Velha Estou com medo de agulhas. Estou cansada de lençóis de borracha e tubos. Estou cansada de rostos que eu não conheço e agora penso que a morte está começando. A morte começa como um sonho, repleto de objetos e do riso da minha irmã. Nós estamos jovens e nós caminhamos e colhemos mirtilos selvagens. …

Essa poesia eu vi quando assiti pela primeira vez os vivos e os mortos , nos anos 90. Desde que vi fiquei apaixonada. Mas só depois da internet é que vim a saber a origem dela, e alguma historinha por trás. Parece que faz parte do folclore gaélico e Lady Gregory (dramaturga, poeta, folclorista inglesa) …

Otimismo

de Jane Hirshfield Cada vez mais admiro a resiliência. Não a simples resistência de um travesseiro, cuja espuma volta sempre à mesma forma, mas a tenacidade sinuosa de uma árvore: encontrando a luz recém-bloqueada de um lado, ela se transforma no outro. Uma inteligência cega, é verdade. Mas dessa persistência surgiram tartarugas, rios, mitocôndrias, figos …

Nostos

Havia uma macieira no quintal – isso teria sido há quarenta anos – nos fundos, apenas prados. Excesso de crocus na relva úmida Eu estava naquela janela: fim de abril. Flores da primavera no quintal do vizinho. Quantas vezes, realmente, a árvore floresceu no meu aniversário, no dia exato, nem antes nem depois? Substituição do …

um o pneu da bicicleta a gente enchia de palha quando furava palha que também era o recheio do colchão da cama dos meus pais que não rangia porque eles mal se mexiam à noite às vezes apenas talvez quase nunca porque o pai não chegava à noite chegava sem dar bom dia a mãe …

Mãe: Que desgraça na vida aconteceu, Que ficaste insensível e gelada? Que todo o teu perfil se endureceu Numa linha severa e desenhada? Como as estátuas, que são gente nossa Cansada de palavras e ternura, Assim tu me pareces no teu leito. Presença cinzelada em pedra dura, que não tem coração dentro do peito. Chamo …

Uma Palavra

Eu tenho uma palavra na garganta e não a solto, não me livro dela, apesar de seu ímpeto de sangue. Se eu a solto, ela queima o pasto vivo, sangra o cordeiro, faz cair o pássaro. De minha língua devo desprendê-la, encontrar-lhe uma toca de castores, ou sepultá-la com argamassa e cal, para não alçar …

Saldo Negativo

Dói muito mais arrancar um cabelo de um europeu que amputar uma perna, a frio, de um africano. Passa mais fome um francês com três refeições por dia que um sudanês com um rato por semana. É muito mais doente um alemão com gripe que um indiano com lepra. Sofre muito mais uma americana com …

Receita

O poema de hoje é um poema de resistência. Poesia brasileira de resistência à ditadura, feita nos anos sombrios RECEITA Nicolas Behr Ingredientes: 2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos beatles Modo de preparar dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido …

Horas Tardias

  Nas noites de verão o mundo se move ao alcance do ouvido na interestadual com seus silvos e rugidos, uma ocasional sirene que nos provoca arrepios. Às vezes, em noites claras e serenas, vozes flutuam em nosso quarto, lunares e fragmentadas, como se o céu as houvesse liberado bem antes de nosso nascimento. No …

Ruminações

Donizete Galvão Nunca saí dessa roceira Minas que nos dá aflição e dor como herança. Lamaçal de bosta de vaca no curral bem em frente da casa. Cheiro de leite azedo nos latões e de óleo queimado para expulsar bernes. Jardins de dália e corações magoados, chás de consolda e escaldados de quirera. A avó …

De passagem

Lisel Mueller Com que rapidez o mel filtrado da luz da tarde flui para a escuridão e o fechado broto livra-se de seu singular mistério a fim de desabrochar: como se o que existe, exista para poder perder-se e tornar-se precioso.

Imortalidade

Lisel Mueller No castelo da Bela Adormecida o relógio bate cem anos e a garota na torre volta ao mundo. O mesmo ocorre com os criados na cozinha, que nem sequer esfregam os olhos. A mão direita do cozinheiro, levantada há exatamente um século, completa seu arco descendente até a orelha esquerda do ajudante de …

As Causas

Todas as gerações e os poentes. Os dias e nenhum foi o primeiro. A frescura da água na garganta De Adão. O ordenado Paraíso. O olho decifrando a maior treva. O amor dos lobos ao raiar da alba. A palavra. O hexâmetro. Os espelhos. A Torre de Babel e a soberba. A lua que os …

Quando à noite desfolho e trinco as rosas É como se prendesse entre os meus dentes Todo o luar das noites transparentes, Todo o fulgor das tardes luminosas, O vento bailador das Primaveras, A doçura amarga dos poentes, E a exaltação de todas as esperas. Sophia de Mello Breyner Andresen

Tudo o que eu queria Era para sempre esse eterno deslumbramento de pássaro aprendendo o voo de rio aprendendo a montanha Tudo o que eu queria era para sempre esse fôlego, esse brilho esse abraçar o mundo como se o mundo fosse um filho e coubesse entre os braços. – Roseana Murray

Cinzas

No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita. Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa. Tive filhos com dores. Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite, eu tirava da bolsa um quilo de feijão. Não luto mais daquele modo histérico, entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre e …

Repenso o mundo

Repenso o mundo, segunda edição, segunda edição corrigida, aos idiotas o riso, aos tristes o pranto, aos carecas o pente, aos cães botas. Eis um capítulo: A Fala dos Bichos e das Plantas, com um glossário próprio para cada espécie. Mesmo um simples bom-dia trocado com um peixe, a ti, ao peixe, a todos na …

Nostalgia

NOSTALGIA Havia uma macieira no quintal – terá sido há quarenta anos – atrás, apenas prados. Rastos de açafrão na relva húmida. Fiquei naquela janela: final de abril. A primavera nas flores no quintal vizinho. Quantas vezes, na verdade, floriu a árvore no meu aniversário, no dia exato, não antes, não depois? Substituição do imutável …

Bois Dormindo

à Tomé Filgueira A paz dos bois dormindo era tamanha (mas grave era tristeza do seu sono) e tanto era o silêncio da campina que ouviam nascer as açucenas. No sono os bois seguiam tangerinos que abandonando relhos e chicotes tangiam-nos serenos com as cantigas aboiadeiras e um bastão de lírios. Os bois assim dormindo …

O Amor

 Maiakovski […] Ressuscita-me Ainda Que mais não seja Porque sou poeta E ansiava o futuro Ressuscita-me Lutando Contra as misérias Do cotidiano Ressuscita-me por isso Ressuscita-me Quero acabar de viver O que me cabe Minha vida Para que não mais Existam amores servis Ressuscita-me Para que ninguém mais Tenha de sacrificar-se Por uma casa Um …

A jornada

Um dia você finalmente descobriu o que tinha de fazer e então começou, mesmo que as vozes que te rodeavam continuassem vociferando péssimos conselhos – mesmo que a casa inteira começasse a estremecer e você sentisse a velha fisgada em seus calcanhares. “Redima minha existência!” clamaram as vozes. Mas você não se deteve. Sabia o …

A pequena morte

“A pequena morte“, de Eduardo Galeano “Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer …

Contagem regressiva

Acreditei que se amasse de novo esqueceria outros pelo menos três ou quatro rostos que amei Num delírio de arquivística organizei a memória em alfabetos como quem conta carneiros e amansa no entanto flanco aberto não esqueço e amo em ti os outros rostos. Ana Cristina César