“Infância? pobre, mas linda…
Tão linda que mesmo longe
Continua em mim ainda.”
(Vinícius de Moraes — Autobiografia)
Pra que é que eu presto? Pra que serve uma menininha? As respostas podem ser variadas, de acordo com o ângulo e a visão do mundo do respondedor. É possível afirmar, liricamente, que ela enfeita e dá alegria à vida dos pais. Ou, cientificamente, buscar explicações nas leis biológicas de preservação da espécie e sua futura e provável incidência. Nada disso, porém, respondia à angústia da menina nascida no Natal de 1941 e que desde muito cedo era brindada constantemente com o adjetivo de imprestável, coisa meio’ difícil de entender, palavra que se revirava na cabeça sem sentido claro, mas evidentemente negativa, pelo tom de voz em que era insistentemente pronunciada.
Dá para retraçar com certa objetividade a primeira grande dúvida semântica suscitada por esse imprestável. A menina tinha por volta de quatro anos, dá para ter certeza porque era nas vésperas do casamento do tio mais querido, isso não se esquece e deixa conferir a data depois.
— Sua imprestável! Vê se aprende com a Rita Maria a ser uma menina boazinha e prestativa…
Impossível lembrar, tantos anos depois, o que é que a imprestável devia ter feito e não fez. Mas também impossível esquecer a dor. E impossível esquecer que Rita Maria era a prima um ano e meio mais velha, que ajudava a tomar conta dos irmãos menores, e que era tão linda, tão parecida com a tia, mãe da menininha imprestável.
Por mais que a menina tentasse, não conseguia ser linda e parecida com a mãe, como queria. Vai ver até que não era mesmo filha dela, era filha de um bugre, achada no mato pelo avô que abria estrada de ferro, como todos gostavam de contar e brincar. Vai ver, era por isso que queriam se livrar dela, emprestar para alguém, passar adiante aquela menina emprestável. E se fizesse como tantas coisas que se emprestam e ela fosse esquecida, ninguém mais devolvesse? Ela ia ficar com tantas saudades da mãe, do pai, do irmãozinho, dos avós … De noite, antes de dormir, chorava, chorava, olhava pro teto, via as lagartixas passeando no forro do casarão do avô e pensava:
— Se eles não me emprestarem, eu fico tão boazinha que até nem grito se um bicho horrível desses cair em cima de mim.
Não caía. Não dava para testar. Chorava até dormir. E sonhar. Com uma bruxa que levava ela emprestada num dia de ventania e ficava espetando o dedo na barriga dela (anos depois, assistindo a “O Mágico de Oz”, viu na tela a materialização do passado e foi terrível). E com o Bodinho, mistura de um soldado da PE (Polícia Especial), que andava no estribo do bonde de Santa Teresa onde ela morava, com os bodes que se encarapitavam pelos morros do bairro. A bruxa e o Bodinho eram as piores figuras para quem ela poderia ser emprestada. Mas todos os adultos que se aproximavam podiam ser, em potencial, candidatos ao empréstimo. E essa idéia não costumava ser das mais agradáveis.
Um dia, a área semântica do adjetivo precisou-se melhor. Ouviu o pai dizer com profundo desprezo a respeito de alguém:
— Esse sujeito não presta! Era um julgamento definitivo, uma condenação categórica. Então, tinha mais essa… Podia ser que imprestável não fosse alguém a ser emprestado, mas alguém desprezível, que não tem jeito, não serve nem para emprestar aos outros. Daí a algum tempo, a confirmação:
— Mas esta menina é incapaz de fazer uma coisa direito, não presta para nada …
Mais ou menos por essa época (é muito difícil precisar uma cronologia em dor tão remota), pescou a expressão prestar atenção. E pouco antes, ou pouco depois, captara admirações elogiosas a um tal de Prestes. Quem sabe, então, se ela aprendesse a prestar atenção nas coisas, quem sabe, não viraria uma espécie de Prestes?
Aí as pessoas iam falar dela com aquela admiração. Passou a prestar atenção em tudo — em formiga, em joaninha, em casca de árvore, em poeira dançando no raio de sol em frente da janela, em corrida de gota de chuva na vidraça, no barulho que os dentes do avô faziam quando ele comia torrada…
— Essa menina vive no mundo da lua, está sempre distraída, não presta atenção em nada…
Como não presta atenção? Não faz outra coisa, ninguém vê? Vai começando a vontade de brigar… Mas não adianta, lá vem o estribilho: — É mesmo uma imprestável,não serve para nada.
Ah, isso já esclarece mais: quem não quiser ser imprestável, tem que servir. Ou seja, primeira lição clara: para gostarem de mim, não me emprestarem, não
me largarem, tenho que ser servil, obedecer e ajudar nos trabalhos da casa, varrer, tirar pó, tomar conta de neném, essas coisas. Mas aí, além do Prestes, entrou em cena outro personagem. A menina foi levada a um comício dele, na praça cheia de gente, uma rosa ou um cravo na mão, sentada nos ombros do pai, ouvindo a multidão gritar:
— Brigadeiro! Brigadeiro! Brigadeiro! Não é de espantar que o ideal de briga tenha encontrado alguma ressonância. E começou uma oscilação que ia se estender pelos anos afora, na alternância dos adjetivos da definição familiar:
— É uma imprestável! — Sua malcriada! Mas o tempo vai passando, a menininha vai crescendo, aprende a ler, entende muito bem o que quer dizer imprestável, não confunde mais. Imprestável é a trilha sonora que acompanha a limonada. Começa assim:
— Minha filha, pode me fazer uma limonada? Claro. Significa espremer o limão, botar água no copo, pôr açúcar, botar num pratinho com uma colherinha, vir andando bem devagar pelo corredor, equilibrando para não cair, querendo um gole também, esperando um sorriso de agradecimento e encontrar:
— Você é mesmo uma imprestável! Não é capaz nem de fazer uma limonada…
Um dia estava muito doce, outro dia muito azeda, outro dia muito aguada. Mas, entre caretas e resmungos, desaparecia lá dentro da goela da mãe, sem ficar nem um golinho de fora.
Malcriada era de outro escalão. Sabia perfeitamente quando ia fazer algo para merecer o adjetivo e até se orgulhava disso. Era uma resposta a uma atitude consciente de provocação. Imprestável, não. Vinha sempre numa angústia nebulosa, machucando injusto, inesperado na maioria das vezes, humilhante. Acompanhava outra constelação qualificativa:
— Desmazelada! Desleixada! Relaxada! Esses eram quando deixava as coisas fora do lugar, não arrumava gavetas, esquecia a porta do armário aberta. Às vezes, tais adjetivos vinham acompanhados de outro:
— Porca! Este se aplicava especialmente aos cadernos que guardavam a marca do que tinha sido escrito a lápis e fora apagado. Culpa da borracha? Do lápis? De quê? Da menina, claro. Podia haver outro culpado para tudo de errado que acontecia? Para não ter que apagar os erros, o jeito era não errar nunca, levar a auto-exigência a rigores aflitivamente insuportáveis e nunca reconhecidos. Ser primeira da classe — “não fez mais do que sua obrigação” — caxias, objeto de zombaria da turma. Morre de vergonha até hoje ao lembrar que passou no vestibular com média 9,8. E que muito depois, no exílio, contratada para trabalhar na BBC de Londres, levou algum tempo para descobrir que podia errar, os técnicos apagavam o erro na fita gravada, era só repetir — ela era a ave rara que já trabalhava ali há semanas e nunca tinha engasgado ou tropeçado. Ninguém via o tamanho da doença que isso representava. Só ela, que convivia com essa dor desde menina.
Mas no doce e ameno tempo da infância, não adiantava se esforçar para não errar. Só reparavam nos erros. Com outras frases que ficaram:
— É incapaz de fazer as coisas direito! — Sem-jeito mandou lembranças… Mandou mesmo … Pegava na agulha de crochê sem qualquer habilidade. Enfiava linha na agulha (ou agulha na linha? até hoje não sabe…) de um modo tão esquisito que se encantou quando descobriu que o Huck de Mark Twain fazia o mesmo e, pelo menos, tinha um companheiro — que virou paixão — numa balsa do Mississipi. Pegava qualquer coisa, cheia de dedos, deixava cair, entornava, se queimava, se cortava. Com quase quarenta anos, decifrou o mistério, graças a muitas cabeçadas, algumas quedas e um eletroencefalograma: tem um foco de disritmia, o que complica certas sutilezas motoras. Mas antes, só podia se afligir e chorar. Mas podia? Lá vinha:
— Engole esse choro! Já! Só quem já experimentou sabe como é impossível. Ainda mais para uma “manteiga derretida”. Mas havia tanta coisa a ser engolida já, além do choro: dobradinha que crescia na boca feito esponja, nata de leite que grudava no céu da boca num nojo só… Vontade de vomitar. Qualquer pessoa que falar das delícias da infância sem fazer um parênteses para o que nos impingem à força goela abaixo (sei de um menino que levava golpes de colher nos dentes para abrir a boca, e é filho de uma super mãe amantíssima) é porque não tem memória. Mas dá para passar por cima dessas coisas neste depoimento. Deixar o capítulo alimentar ao lado da novela do vestuário, que compreendia vestidos de organdi espetentos, com forro de tafetá engomado, duro, que arranhava a cintura e debaixo do braço até deixar marcas, e se completava com a indumentária de praia — maiô de lã que semeava assaduras entre as pernas e obrigava a andar de perna aberta, ouvindo broncas sobre ser uma menina sem modos. Mas deixa pra lá. Falar na comida lembra o clima da mesa, e isso é dose para elefante. Tinha vezes até que era ótimo, a hora em que todos os irmãos se reuniam, contando casos da escola, dos amigos, de tudo, num tumulto:
— Agora é minha vez! — Deixa eu falar! Tinha sempre a irmã que corrigia: — Não foi bem assim … Lá vem a Ana exagerando…
Mas às vezes, saía um tumulto. Por qualquer bobagem. Aí era um inferno. O pai levantava da mesa. Assim não é possível! E cada um dos filhos era culpado da dor de cabeça do pai, de ter estragado o dia dele, do choro da mãe. Quando esse coro se misturava com o eterno motivo da imprestável (por exemplo, se a causa da irritação tivesse sido porque a menina que pôs a mesa esqueceu alguma coisa), começava a haver uma variante nova — o refrão do marido:
— Assim não arranja um marido. — Imprestável desse jeito (desmazelada assim, etc.), o marido um dia se levanta da mesa e vai embora.
Seria possível continuar por páginas e páginas. Mas não era tudo horrível, claro. E há um outro lado. O que salvou. Primeiro, a consciência de que a desgraça era coletiva. Nos primeiros anos, de filha única ou só com um irmão, o peso era muito maior. Quando se distribuiu pelos nove filhos, ficou mais fácil de carregar. Acontecia com os outros também. E o convívio fraterno foi sempre uma coisa de uma carga tão positiva nesses tempos de infância que dava força para segurar qualquer barra.
Apesar dos ciúmes e rivalidades naturais, das brigas eventuais, o carinho era muito grande e muito bom. Dava para ir em frente numa boa. Graças à repetição do processo, que o atenuava. A história se repetia. Era muitas vezes …
Mas outro instrumento de salvação foi o Era uma vez… As histórias que a mãe e o pai contavam, pondo a gente no colo, sentando do lado na rede ou na beirada da cama. Quem contava aquelas coisas tão maravilhosas, daquela maneira tão carinhosa, só podia gostar da gente… E as histórias ensinavam tanto… Traziam a certeza da esperança, garantiam a vitória do mais fraco, aplacavam as angústias difusas, davam forma às bruxas fora da gente. Pelo que a mãe contava, a menina ficava sabendo que Chapeuzinho Vermelho pode ser comida pelos lobos nos bosques da vida e não há vovó que proteja, mas no fim ela ganha. João e Maria podem ser abandonados no fundo do mato, se enganar com a promessa dos mais velhos, ser obrigados à força a comer o que não querem, mas um dia põem a bruxa no fogo e quando ela grita:
— Água, meus netinhos… Eles podem ser malcriadíssimos e gritar: — Azeite, minha vozinha… As histórias mostravam que Branca de Neve ficava mais bonita que a madrasta e, por mais que tivesse que lavar as escadarias do palácio, cozinhar e arrumar casa para sete anões, enfim, provar o tempo todo que sabia fazer limonada e não era imprestável, no fim ia acabar se salvando. Houve alguém mais porca e explorada do que a Gata Borralheira ou Pele de Asno? E que dizer de A Bela e a Fera, onde mesmo um bicho tão horroroso podia ser amado de verdade? Havia esperança…
Depois que a menina cresceu, olhou para trás e viu que as histórias foram bonitas, verdadeiras e boas, conseguiram mostrar o carinho como os gestos e as palavras tão reprimidos daquela geração não tinham conseguido. Não curaram a dor, não desmancharam as cicatrizes, seria pedir muito. Mas ajudaram, com suas palavras, a fechar as feridas das outras palavras.
Muitos anos, muitas histórias e dois filhos depois, a menina virada mulher olha para tudo isso lá atrás, numa mistura de carinho e dor, ainda Tem que fazer um depoimento sobre isso, que a Fanny pediu. Senta e escreve, num escrever que flui. Depois pára, sem saber como acabar, adia, interrompe o texto uns tempos.
Pensa na filha que está a caminho — maravilhas da ciência moderna, agora a gente sabe até que é uma menina, antes mesmo de nascer. E de repente, um dia, entrando em trabalho de parto, literalmente a caminho da maternidade, nas horas tensas em que, bem ou mal, as fantasias de medo da morte se misturam com as emoções do limiar da vida, lembra que o prazo para o artigo também se esgotou, o texto tem que ser mandado já, tem que ser completado. E neste momento logo antes da infância de outra menina que se inicia, a mulher se pergunta se seria capaz de responder à velha pergunta:
— Pra que serve uma menininha? Pra que é que eu presto? Não há respostas sabidas. Para o que serve todo ser humano? Para cumprir os desígnios de Deus, dirão os religiosos, ou prosseguir o ciclo da natureza, dirão os sensatos. Um filósofo e romancista como Camus talvez dissesse que para cumprir o absurdo da existência, como Sísifo em sua maldição mítica: rolar com esforço uma pesada pedra montanha acima e, lá no alto, vê-la despencar-se encosta abaixo, descer e recomeçar a empurrá-la, pelos séculos dos séculos. E, apesar disso, não se suicidar. E se a essa consciência lúcida puder se somar mais um vestígio de história de fadas, talvez a mulher pedisse às fadas no nascimento de sua menina o que já pediu no nascimento dos meninos:
— Que ela tenha saúde e seja muito amada, tão amada, mas tão amada mesmo, que dê para se sentir amada. E que isso lhe dê força e coragem para enfrentar a barra da infância, que é pesada, dura e requer coragem. Para que possa ter consciência e lembrança dos momentos em que for feliz.
“Sei lá, sei lá…
A vida é uma grande ilusão.
Sei lá, sei lá…
Só sei que ela está com a razão.”
Vinícius de Moraes
MACHADO, Ana Maria. Pra que é que presta uma menininha? In: ABRAMOVICH, Fanny (Org.). O mito da infância feliz; antologia.
São Paulo: Summus, 1983.