Heidegger adorava os “Rios”, de Hölderlin, sobretudo quando o poeta dizia que o rio peregrina e funda a ideia de natalidade. Pertencimento, em suma. Desta sensação de que pertencemos ao rio e ao lugar por onde o rio passa, e sempre fica, vem a sacralidade dos cursos das águas. Para aquele que Heidegger chama de homem da técnica, todavia, o rio é o objeto presentificado. Serve apenas para ser manipulado objetivamente, em virtude dos interesses materiais concretos dos homens.
O outro rio, o que vela e desvela, o que peregrina e manifesta o sagrado (aquilo que Hölderlin chama de “festa” em que os deuses vêm como convidados) , é detestado pelo homem da técnica; um desencantador por excelência.
Pai Francelino de Shapanan, Abê Olokun, lembrava lindamente que para o povo do tambor-de-mina o encantado não é o espírito de um humano que morreu; perdeu seu corpo físico. O encantado é aquele que se transformou, tomou outra feição, nova maneira de ser. Encantou-se em uma nova forma de vida, numa planta, num peixe, num animal, no vento, na folha, num rio.
Nas praias do Itaqui, de Olho d´Água e da Ponta d´Areia moram a Princesa Ína, a Rã Preta, e a Menina da Ponta d´Areia. A pedra de Itacolomi é a morada de João da Mata, o Rei da Bandeira. A Praia dos Lençóis é do Rei Sebastião; a Mãe d´Água passeia nas pontas de Mangunça e de Caçacueira. Nas matas de Codó vivem Dom Pedro Angasso e a Rainha Rosa. É lá que Légua Boji Boa comanda as caboclas e os caboclos de sua guma.
Na encruzilhada em que escuto o tambor-de-mina e leio os alemães, assombrado pelo desencanto de Mariana e agora de Brumadinho, concluo que quem morre não é a natureza, mas nós todos, que perdemos a dimensão da única sacralidade possivel para as nossas vidas; aquela que percebe o rio a partir da terceira margem, como intuiu o canoeiro do conto seminal de Guimarães Rosa: não mais o Paraopeba procurando o São Francisco, não mais o humano, não mais o natural. Tudo é um rio só: feito de carne, osso, folha, pedra, peixe, jitirana e água.
(do instagram de)
Luiz Antonio Simas